História, ficção e memória: diálogos entre Ungulani Ba Ka Khosa e Marcelo Panguana*

Por : Daniel da Costa

 

Assim não, senhor Presidente, de Ungulani Ba Ka Khosa, foi a minha última leitura de 2023. Um livro surpreendentemente cáustico, um autêntico manifesto. Livro premonitório de um autor preocupadíssimo com o seu tempo, com o rumo dos acontecimentos em Moçambique. As vozes que se encontram nesta obra de ficção narrativa (bastante porosa, diga-se de passagem) dialogam, de forma áspera, desencantada e contundente, com as vozes que transportamos dentro de nós, espicaçando a apatia dos ‘João Merda’ e ‘Catarina Punheta’ desta vida, nomes de baptismo passíveis de se encontrar num país “que já nasceu fodido”, com uma moçambicanidade “hipócrita” e sem raízes.

A obra indaga o nosso destino colectivo, como nação política, nação cultural, nação económica, prenhe de debates estruturantes constantemente adiados.

Passa em revista a questão identitária sublinhando a matriz Bantu, o complexo de inferioridade em relação ao europeu, a aventura socialista, os campos de reeducação, a miragem da cidade de Unango que estava a ser construída “com enxadas e machados”, as execuções sumárias, a fome, a guerra, a paz sem reconciliação, o capitalismo selvagem, as talácuas, essas formigas “verdadeiramente vorazes” que “formam um tapete à medida que devassam a floresta, devorando tudo à sua passagem”, os “esquadrões da morte”, o “desnorte” governativo, as eleições como “legitimação” de “novas trapaças”, enfim, a necessidade de reavaliar as nossas utopias de sociedade e de progresso. Dedicado à geração 8 de Março, é um livro intenso, actual, que vale a pena ser debatido.

 

A hora maconde

Foi arriscado ler A hora maconde, de Marcelo Panguana, a seguir ao romance Assim não, senhor Presidente, da autoria de Ungulani Ba Ka Khosa. Um título estava a seguir ao outro na cabeceira e caí na tentação de fazer comparações. Não estava no plano.

Ambos os livros exploram à partida uma boa matéria-prima: a História de Moçambique como colónia portuguesa (Panguana) e como país independente (Ba Ka Khosa). Mas os livros têm personalidades diferentes, à luz das estratégias discursivas usadas por cada um dos autores para tecnicamente nos apresentarem uma prosa com entrosamento, ritmo e clímax bem delineado. Objectivamente, a proposta de Panguana não tem um início tão arrebatador quanto à de Ba Ka Khosa. Enquanto este autor agarra o leitor à primeira e usa técnicas que prolongam o seu interesse até ao fim, com o texto a evoluir em forma de espiral em direcção ao desfecho, a voz do narrador de Panguana só se encontra consigo lá mais para o meio da história e perde alguma assertividade na busca do clímax.

Entretanto, o romance de Marcelo Panguana é um relato da guerra numa perspectiva bem interessante: a de um oficial negro do exército colonial português em conflito com a sua consciência por estar a combater guerrilheiros nacionalistas. A proposta literária de Marcelo Panguana faz um notável retrato do perfil psicológico da tropa colonial na frente de combate.

De permeio, exalta a paradoxal beleza das paisagens no teatro das operações em Cabo Delgado e enaltece a cultura maconde que, coincidentemente, este ano viu o mapiko consagrado como património universal pela UNESCO.

(Um aparte castrense: achei interessante a revisitação feita à eficiência logística do exército colonial que conseguia assegurar serviços de socorro e regularmente distribuir correio, vinho e mantimentos nos lugares mais recônditos onde estivesse um soldado português, um assunto com bastante actualidade quando se discute a relação entre a logística e o moral combativo das nossas forças armadas no presente).

Voltemos à técnica. A composição das personagens em A hora maconde poderia ter sido favorecida por algum barro adicional, por forma a que os níveis de verosimilhança conseguissem estar à altura do ângulo escolhido pelo autor para contar a história dos últimos anos da guerra colonial e prender o leitor do princípio ao fim, sem oscilações acentuadas de interesse. A minha expectativa pode ter sido inflacionada pela força do título, extraordinariamente bem conseguido, e pela trajectória do autor, recheada de distinções. Para terminar esta brevíssima nota de leitura, não vá alguém pensar que tenho a veleidade de esgotar a complexidade deste livro nestes parcos parágrafos, subscrevo as observações que Nelson Saúte fez do trabalho bastante confrangedor de revisão.

A Alcance Editores devia ter um maior controlo da qualidade dos seus produtos. É imperativo que a editora proteja a sua marca, a dignidade das suas colecções e o prestígio de autores da estirpe de Marcelo Panguana e Ungulani Ba Ka Khosa.

 

* Título do editor.

Fonte: O País

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